UM DIA DE UMA VIDA INTEIRA
Era tarde. Chamei o motorista e comecei a me despedir de todos. Ele perguntou se eu podia lhe dar uma carona. Totalmente atônita pela iniciativa dele, respondi que sim. Era estranho. Ele sabia que eu não estava de carro e que eu morava na direção oposta à dele. Tentamos conversar no carro, mas o motorista não parava de falar. Cheguei em casa. Na afoita despedida dentro de um carro estranho, nós dois ensaiamos um beijo desajeitado. Eu achei que fui eu que mirei na boca, ele, que foi ele. Antes disso, cheguei ao show daquela noite com a única intenção de estar ali. Entrando na sala, de cara fiquei atraída por ele. Não sei se foi a armação dos óculos, o cabelo cacheadamente desajeitado, a barba, a concentração, a postura, o rosto, o nariz esmagado do lado direito ou se era a camiseta com minha cantora favorita. Só sei que me senti altamente atraída. Coisa raríssima. Oportunidade de conversarmos sozinhos não teve. Era a casa de um amigo em comum e muitos amigos estavam presentes. Eu nunca antes o tinha visto por lá. Durante aquela noite, agora me dou conta, ele fez de tudo para estar perto de mim. Até uma foto nossa um amigo em comum fez como que tendo uma premonição do que estava por vir. Esbarramo-nos na cozinha e trocamos algumas poucas palavras. Na sala, na varanda, ele sempre estava por perto. Dava um jeito de se mostrar presente com poucas palavras. Olhava, encostava, aparecia, mas pouco dizia. Assim, na hora de nossa despedida dentro do carro, nenhum dos dois sabia o que fazer. Combinamos de nos encontrar no dia seguinte na casa dele. Quanto tempo fazia que eu não me sentia tão confortável na presença de alguém. Era como se nos conhecêssemos há muito tempo. Tínhamos inúmeras diferenças, mas partilhávamos do mesmo conforto de estar à vontade um nos braços do outro. Era aquele dia de uma vida inteira. Aquele dia em que tudo faz sentido. Aquele dia que você sabe que aquela pessoa é a sua pessoa. Que todas as escolhas do passado fazem sentido. Que quem você é encaixa no que o outro é sem esforço. Onde todas as suas certezas sobre o amor se confirmam. Aquele dia que você sente o sentido da vida. Aquele dia que confirma a existência da palavra destino. Sem esforço, sem mentira, sem tentar ser nada. Tudo fluindo e encaixando. Um fluir convergente de dois humanos numa corrente de coerência energética. Um dia de presença intensa em que cada detalhe fica registrado, consumado. Em que palavras não são necessárias para entender o sentimento de ambos. Em que a conversa de continuidade não precisa existir. As emoções, os sentimentos e a certeza dão o rumo. Um dia de uma vida inteira. Depois de doze horas de tudo, ir embora não dava medo nem insegurança. Era o dia da vida inteira. O dia da certeza. Sabia que era só o primeiro dia e, portanto, tinha a vida inteira com ele. Dois dias depois, fui num lugar que não costumo ir por insistência de uma amiga. Ele estava lá! Chegou até mim e disse “não acredito que você está aqui!”, era mais uma confirmação. Joguei-me nos braços dele e fui beijá-lo. Os braços estavam vacilantes, o beijo foi desviado, a conversa não aconteceu. Ele saiu dizendo que ia ao banheiro. Não voltou mais. Percebi que estava nos braços de outra. Vi os beijos, os carinhos, os abraços que em tão poucos dias atrás haviam sido meus. De frente pra mim eles estavam. Fiquei parada perplexa aguardando o momento em que ele viria dizer qualquer coisa ou que fosse embora constrangido. Seria o curso natural dos acontecimentos. Como agir diferente depois de ter vivido o dia de uma vida inteira? Nenhum desconforto visível da parte dele em estar na minha presença com outra. Nenhuma palavra a respeito. Nada jamais foi dito. O dia de uma vida inteira tinha sido só mais um dia. Deneli Rodriguez. 25.06.2019.
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